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Elenco de “Freud-Einstein, Maio de 1933” no picadeiro

Mônica Rodrigues da Costa*

Quem já viu um circo pano de roda sabe. Uma aglomeração de palhaços, músicos atravessando a rua com seus tambores, artistas de perna de pau, malabaristas, o público e curiosos inicia o espetáculo. A trupe, como de costume na capital paulista, se exibe perto do café dos artistas.

Nos teatros do conjunto de CEUS (Centros Educacionais Unificados), em geral localizados na periferia (escolas integrais da prefeitura), esses centros culturais realizam atividades extraclasse e de lazer para os alunos e suas famílias nos fins de semana — o público da periferia, todos podem frequentá-los na comunidade. Os eventos são gratuitos. Até 19/02/2021 alguns deles exibem o filme de teatro “Freud-Einstein, Maio de 1933” – é vídeo da peça ou vice-versa ao contrário. O telespectador vê em casa o filme, que é seguido de debate em live com o ator e diretor Rodrigo Matheus, que assina o projeto e a direção geral.

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. Cartaz do filme que vai ser exibido no CEU Navegantes

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O filme tem início com essa espécie de procissão antes do espetáculo, depois os artistas conversam entre si e informam ao telespectador que se trata de um ensaio. A peça-filme é uma adaptação de texto de Alain Didier-Weill (1930-2018) por Rodrigo Matheus com direção de Lygia Barbosa. Alexandre Roit fez a consultoria dramatúrgica.

O time é experiente e premiado. A fotografia nos surpreende (Paulo Gambale [Maká]) com uma cenografia e figurinos fellinianos, de Marco Lima. Panos remendados da lona com cores esmaecidas. Uma coisa velha em cima da outra. O circo degenerado.

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Einstein e Freud conversam no picadeiro caindo aos pedaços

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O enredo, ou argumento, traz uma conversa entre os gigantes Sigmund Freud (1856-1939) e Albert Einstein (1879-1955) nesse picadeiro caindo aos pedaços, com lixo, cadeiras, malas por todos os cantos e um monte de aparelhos para os diversos números que são realizados sob a lona. Sentados no sofá, andando pelo espaço ou acomodados numa poltrona ou cadeira, dois palhaços (Matheus e Joca Andreazza) e a filha de Freud (Karen Nashiro) ensaiam uma vez só o drama que vão apresentar de noite.

Vê-se logo que os artistas são mambembes, sem grana. Rodrigo e Joca vestem paletós escuros, com tecidos e bordados sobrepostos. Trazem no corpo sinais da memória da vida de quem viaja com trupe.

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Anna Freud: bailarina, acrobata e mulher borracha no picadeiro/Foto Paulo Barbuto 

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A incrível bailarina e mulher borracha, Anna, é a um só tempo as duas e depois acrobata de parada-de-mão e ginasta. Não erra um número e é ágil, mesmo sem roupas coloridas. Andreazza e Matheus agarram nossa atenção, falam com clareza, têm elegância e gesticulação sensual. Ambos impõem firmeza a seus personagens. A música com só um instrumento, apenas um violino com um músico (Leonardo Padovani) dentro da cena. Normalmente os músicos ocupam os espaços laterais do palco.

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Leonardo Padovani, o músico, da peça/Paulo Barbuto

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Os cientistas procuram respostas para a pergunta que Albert Einstein (Rodrigo Matheus) pediu a Sigmund Freud (Joca Andreazza) em 1932: há algum modo de não existir guerra? Einstein várias vezes afirma que Freud ganhará o prêmio Nobel. Ironicamente foi Einstein que o recebeu, em 1921.

Enquanto os personagens Einstein e Freud conversam, a bailarina Anna Freud exibe seus números, conversa com o pai e interrompe os diálogos para traduzir conceitos para o público e liga o rádio para ouvir notícias das guerras e do louco assassino Hitler, que havia tomado o poder na Alemanha e tinha pesadelos napoleônicos.

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Freud e Einstein e Freud conversam  .

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Os personagens falam entre si e para o telespectador que aquele é o único momento de ensaiar diálogos tão complexos. Uma palhaçada. Mas o assunto arrebata o espectador, que bem que gostaria também de ver a história encenada com público ao vivo.

O filme joga com as duas linguagens, com o diálogo, perguntas à queima-roupa; respostas já prontas e afiadas, com piadas sutis ou trocadilhos. Conversam sobre as coisas paradoxais. Einstein expõe a teoria da relatividade demonstrando que o universo é curvo, por isso os planetas rolam no espaço. Está angustiado com a guerra, que se avizinha. Freud explica a Einstein que uma psicoterapia da população inteira de uma cidade e a psicanálise de Hitler eram impossíveis.

Com papéis amarrotados nas mãos, os artistas falam da teoria freudiana que envolve a pulsão de morte, o desejo, a histeria, os sonhos, o inconsciente que comanda as escolhas que as pessoas fazem sem perceber. Freud demonstra como é o trabalho invisível do inconsciente, que decide por nós ações que nunca tínhamos imaginado (aparentemente).

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Rodrigo Mateus fala dos palhaços que erram ou nem entendem o que dizem

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Rodrigo Matheus falou no debate após a exibição do filme e sintetiza um dos aspectos explorados da peça: “Procuramos manter os palhaços como eles são, erram, voltam ou nem entendem os textos ou o que dizem”. O telespectador ri por dentro desse absurdo de a trupe escolher um texto de um psicanalista dramaturgo, Didier, que fala com a objetividade da ciência.

Com a movimentação de uma cena habitual de sala de visita, a conversa científica dos dois trata de religião, da perseguição aos judeus, das leis e tratados feitos e a serem feitos, o que dá um clima tenso-descontraído à conversa ao mesmo tempo irônico e trágico que é a metáfora do modo humano de viver. Em um momento Einstein diz: “Você escuta o mundo, eu o vejo”.

Analisam a atmosfera na Europa e governos tiranos e injustos. A Liga das Nações (atualmente a Organização das Nações Unidas [ONU]) não ia conseguir fazer cessá-la. Freud desenvolve as ideias de poder, força e lei. Acredita em um ser humano inclusivo, por exemplo, com a religião que quiser. Rodrigo representa a impossibilidade de Freud de desenvolver uma psicanálise de Hitler.

Einstein avisa a Freud que a perseguição judaica recomeçara. Os dois não inferem como o planeta ficará. Freud só se interessa por sua pesquisa, mantém-se tranquilo e fala em tom de piada leve, que já tinha se acostumado a ser tratado como judeu no sentido negativo. Enquanto Einstein mostra-se inquieto e por vezes irritadiço.

É a densidade do que é falado, o desenrolar do diálogo, o que mais atrai no filme. Evoca o teatro didático de Brecht, a filosofia grega, mitos e ídolos. O duplo sentido corre solto, ou seja, ambos fazem muitas metáforas para inventarem respostas. Albert pergunta: “Conhece minha teoria sobre a relatividade? Freud responde algo como: “Só quem não a entende é a Alemanha e Brasília.

O assunto pode ser mais esclarecedor se você tiver lido as cartas trocadas entre Einstein e Freud, elas, sim, distantes do repertório habitual das salas de visita. Mas a peça é fácil e atraente, tudo é dito de modo simples. Todo mundo entende. Quer dizer, um todo mundo imaginário dentro de um circo mambembe.

Tudo no filme nos leva a pensar sobre a própria condição de ser humano, homem contemporâneo de um país tropical de Terceiro Mundo.

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Einstein e Anna Freud – personagens do vídeo-teatro filmado no picadeiro

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Os personagens ouvem no rádio o discurso nazista de Goebbels, funcionário de Hitler informando que o louco de pedra acabara de ser nomeado chanceler.

Em um momento, Freud afirma que a filha Anna é a Antígona dele e explica a Einstein que “Antígona não está enganada e tem razão”.

Einstein insiste com Freud que saia da Áustria. Freud acha que perderá o desenvolvimento da psicanálise. Os diálogos são fascinantes e parecem que não acabam nunca. Os personagens falam sobre o medo, o tempo, a desesperança.

“Pela sua pulsão de morte o mundo permanece do jeito que é”, diz Einstein. Freud responde: “Se pensamos que a guerra está relacionada à loucura entendemos mais”.

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Debate depois da exibição do filme

Após a exibição do filme Rodrigo Matheus debate com os telespectadores ao vivo. Disse em entrevista em 30/01, durante o debate, que fazer a live foi um modo “de encontrar outra forma acessível para agilizar a conversa com o público. Explica: “Artista tem o dever de viver de sua arte. Pra gente esse circo destruído é o Brasil, mas os artistas estão habituados com as dificuldades”. Diz ainda que “o texto aborda a pureza da razão e a obscuridade da emoção e instinto”. No final pede que todos se vacinem contra a doença Covid-19

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Combo sobre a definição de poder e violência na carta de Freud a Einstein

Einstein levanta o problema de como cessar a guerra e Freud pede que ele pense nos conceitos de direito e poder propondo a troca da palavra poder pela palavra força. Explica que todos os conflitos de interesse e opinião são resolvidos entre nações na base da violência. Compara a vida humana à animal destacando a ideia de força como relacionada a ideia de força muscular que depois foi substituída pelas armas, instrumentos de matar.

A superioridade intelectual supera a força bruta pela violência agora apoiada na persuasão do intelecto. Fizeram-se as leis relativas ao direito de defesa. Freud observou que um coletivo de pessoas é bem mais forte do que uma luta individual contra a tirania. A lei se torna a força da comunidade. Se não funcionasse, as nações lançariam mão da violência e o fenômeno seria cíclico e alternado.

Porém quem faz as leis ou determina que sejam feitas é quem tem poder, deixando pouco espaço para os fracos e oprimidos e então Freud crava: “As guerras poderiam ser evitadas se a comunidade se unisse para estabelecer um governo central”, mas diz que isso é quase impossível e que a identidade entre as comunidades é menor do que suas rivalidades e por isso não há solução para extinguir a guerra. Se refere à própria teoria dos instintos de amor e ódio, de domínio ou pulsão de morte. Por exemplo, todas as pessoas têm em si o instinto da destrutividade, ou de morte, e os eróticos, que representam o esforço de viver. Como os homens são desiguais, os mais fracos se submetem a uma minoria de fortes e aí se cria uma classe dominante que faz as regras para si mesma deixando as massas em uma situação de injustiça, com menos direitos do que são necessários.

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Cartaz sobre o filme a ser exibido no CEU Inacio Moreira

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Ficha técnica

“Freud- Einstein, MAIO DE 1933”

Adaptação: a partir do texto original de Alain Didier-Weill, tradução de Cristiane Cardoso Lollo; Direção: Lygia Barbosa; Elenco: Karen Nashiro (Anna Freud), Joca Andreazza (Sigmund Freud), Rodrigo Matheus (Albert Einstein) e Leonardo Padovani (Músico); Concepção e adaptação do texto: Rodrigo Matheus; Consultoria Dramatúrgica: Alexandre Roit; Direção de fotografia: Paulo Gambale (Maká); Direção de Arte (Cenografia e Figurinos): Marco Lima; Iluminação: Gabriel Greghi; Trilha sonora: Leonardo Padovani; Direção de Atriz e Atores: Carla Candiotto; Coordenação geral: Rodrigo Matheus; Produção: Marcela Marcucci; Assistência de produção: Priscila Guedes e Ulisses Dias (Bará Produções); Programação visual: Fernando Sato (Casa da Lapa).

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Horários

Vá aos canais de Youtube dos CEUS ou a suas páginas no Facebook.

CEU Uirapuru

14 de fevereiro de 2021 Domingo, 10h e 14h

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CEU Campo Limpo

15 de fevereiro de 2021

Segunda, 10h e 16h

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CEU Parque São Rafael
16 de fevereiro de 2021
Terça, 15 e 18h
CEU Casa Branca

19 de fevereiro

Sexta, 10h e 16 h

Duração: 60 min. | Classificação: 14 anos
 

** Jornalista, professora e poeta

FOTOS/PAULO BARBUTO  

Legenda Foto de Capa – Cena de “Freud-Einstein, Maio de 1933” a ser exibido nos CEUs

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