*
*
Ivy Fernandes
De Roma
Com o aparente arrefecimento das infecções pelo coronavírus, a Itália se prepara para as comemorações do centenário de nascimento de Federico Fellini, um dos maiores expoentes da cultura italiana.
*

*
Estão sendo preparadas mais de 200 exposições no país e, em todo o mundo, mais de 3 mil eventos, entre mostras, debates e festivais de filmes fellinianos. Em Roma, onde o cineasta viveu e trabalhou a maior parte de sua vida, os estúdios cinematográficos da Cinecittá, em que realizou seus filmes, apresentam a mostra Fellinianna. Milão prepara para a primavera de 2021 uma grande mostra no Palácio Real que terá o título de Federico Fellini: um racconto. As afirmativas são de Francesca Fabbri Fellini, sobrinha e curadora do patrimônio artístico e cultural de seu tio, em entrevista ao Panis & Circus, em Roma.
*

*
Segundo Francesca Fabbri Fellini a mostra recém-inaugurada, Felliniana, organizada por Dante Ferretti, cenógrafo e figurinista que acompanhou Fellini em vários filmes, é a que mais se relaciona com os sonhos do cineasta. O grande interesse demonstrado pelo público levou os organizadores a transformar em exposição permanente o evento que terminaria em 31de dezembro.
*

*

*
Fellini, que viveu de 1920 a 1993, é considerado um dos maiores cineastas da história do cinema mundial. Seu primeiro filme foi Lo sceicco bianco (Abismo de um sonho), de 1952, e seu último, La voce della Luna (A voz da lua), de 1990. Em quase quarenta anos de trabalho, ganhou quatro Oscars na categoria “melhor filme estrangeiro”, por La strada, Le notti di Cabiria (Noites de Cabíria), 8½ e Amarcord, seu filme mais íntimo, dedicado às recordações da infância e juventude.
*

*

*
A magia no mundo de Fellini
Segundo Francesca, o mundo mágico de Fellini começou a rodar quando tinha dez anos. Foi quando fugiu de casa, na cidade de Rimini, para acompanhar um circo que acabava de se apresentar na localidade. Pela peraltice, ficou duas semanas de castigo. Esse contato com o mundo circense marcou profundamente a alma do futuro cineasta.
Francesca lembra que, quando o tio a visitava, contava histórias mágicas sobre o circo e desenhava, entre outros, palhaços, picadeiros, comedores de fogo, bailarinas, mulheres-baleia e acrobatas. Mais tarde, já adulta, pode ver vários desses personagens na obra cinematográfica do tio.
Fellini fez do mundo circense uma ponte entre vários filmes, a começar pela sua primeira obra, Lo sceicco bianco (Abismo de um sonho), em que dirigiu o cômico Alberto Sordi e ensejou grande destaque para os traços grotescos, absurdos e irreais dos personagens.
*

*
Um dos trabalhos favoritos do tio, conta Francesca, foi um documentário Clowns feito para a RAI, em 1970, sobre a vida circense, especialmente dos palhaços. Distribuído para todo o mundo, o filme foi recentemente restaurado pela Cinemateca de Bolonha. Para Fellini, a obra era parte de uma viagem nostálgica e de suas recordações infantis, quando sonhava viajar pelo mundo seguindo um circo.
*

*
Quase por acaso
Fellini provinha de uma família modesta. Seu pai era um caixeiro viajante. Tudo indicava que seus três filhos, Federico, Riccardo e Maddalena, seguiriam a picada aberta pelo pai no comércio. Mas, quase por acaso, a carreira do futuro cineasta começou a ser desenhada em Roma, após a Segunda Guerra. Com 20 anos, Fellini foi estudar e tentar a vida na cidade. Ali começou desenhando cartoons, depois foi ajudante de cena. Mas, quando conheceu o cineasta Alberto Lattuada, virou vice-diretor. A partir dali alçaria voo próprio.
*

*
Para o cenógrafo e figurinista Dante Ferretti, responsável pela Felliniana, a exposição é uma homenagem à amizade que desfrutou com o cineasta. “Pensei em recriar imagens dos seus sonhos, mostrar ao público a elaborada construção do trabalho de Fellini.”
Ferreti é considerado o intérprete mágico das visões de Fellini. Participou de sete filmes, inclusive do documentário Clowns, rodado em várias cidades da Itália e da França. Ele e sua mulher, Francesca Lo Schiavo, também figurinista e cenógrafa, foram íntimos colaboradores de Fellini em suas aventuras.
A exposição
Segundo Ferreti, a exposição está dividida em três áreas principais. Três salas abrigam uma viagem nos sonhos e inspirações do cineasta. A mostra, produzida pelo Istituto Luce-Cinecittà, é uma pequena ilha dentro da Cinecittà, um espaço físico e onírico. Quando se entra, se tem a impressão de participar de um dos seus filmes.
*

*

*

*
No ingresso, na primeira sala, colocaram o seu automóvel, um Fiat 125 preto, aquele com o qual todos os dias, por vários anos, fez o percurso do centro de Roma à Cinecittà. Dentro do automóvel colocaram as figuras em cera do motorista e de Dante Ferretti. Ao lado do carro, a majestosa imagem de Fellini, um homem alto, robusto com alguns quilos a mais e o eterno chapéu de abas preto. As paredes do espaço são cobertas por cartazes dos seus filmes, um universo felliniano repleto de personagens e cenas inesquecíveis como a de Anita Ekberg e Marcello Mastroianni na Fontana de Trevi.
*

*

*
Desse espaço para o da Casa di piacere, (Casa dos Prazeres) é possível ver uma síntese do imaginário do seu filme La città delle donne, com uma espécie de escorregador de onde descem as moças que trabalham no saloon, e algumas delas circundam Marcello Mastroianni, protagonista masculino do filme. Outra sala muito interessante é a reconstrução exata do cinema Fulgor – lugar emblemático da infância de Fellini e da sua iniciação na arte cinematográfica que foi realmente restaurada em Rimini por Dante Ferretti.
*
A criação de um sonhador
O primeiro encontro entre Federico e Dante Ferretti foi em 1969, durante as filmagens de Satyricon, mas a colaboração entre os dois começou com o filme La città delle donne (A cidade das mulheres), seguiram filmes inesquecíveis como Clowns ( 1970), Amarcord (1973), Prova d’orquestra, 1978, La nave va, 1983. Ginger e Fred, 1986, La Voce della luna ( A Voz da Lua), 1990.
*

*
Segundo Ferretti, a Cinecittà era, na verdade, a casa de Fellini. “Saímos todas as manhãs, bem cedo, ao alvorecer, do centro de Roma, Piazza del Popolo, perto de onde ele morava, na célebre Via Margutta e íamos para as filmagens. O roteiro praticamente nascia no longo percurso, com o seu motorista e o carro, um Fiat 125 escuro”, diz.
“No percurso, que durava uns 40 minutos, Fellini dizia: Esta noite você sonhou? E qual foi o seu sonho? Conta para mim”, diz o colaborador. “O roteiro existia, mas contava o imprevisto.” No início, dizia a verdade. Que não me lembrava dos sonhos. Mas, depois, começava a inventá-los, pensando nas memórias da infância, na minha cidade, Macerata, no sul da Itália. Como quando acompanhava minha mãe à costureira e deixava cair qualquer coisa debaixo da mesa para espiar as roupas íntimas das costureiras, pernas, meias escuras, coxas redondas, o mundo feminino que eu, ainda menino, não conhecia. Eu contava histórias a Fellini durante o trajeto e ele achava divertido, mas sabia que algumas eram inventadas. Mas, para minha surpresa, criava alguns personagens destes sonhos de adolescente de província, como uma vendedora de verdura, um açougueiro, uma dançarina sedutora etc. Figuras reais que entravam nos seus sonhos oníricos. Sobretudo aquelas mulheres altas, grandes, com seios enormes”, explica o colaborador.
De acordo com Ferretti, a maior dificuldade em trabalhar com Fellini era entrar em sua imaginação e entender exatamente o que ele queria fazer. Muitas vezes ele também precisava de alguém que pudesse provocar a sua inspiração.
*

*
Felliniana é a pequena pérola no movimentado mundo do cinema do cineasta. E o trabalho de restauração de toda a obra de Fellini, realizado pelo Istituto Luce-Cinecittà, Cinemateca de Bolonha e a Cineteca Nacional, vai permitir exibir retrospectivas completas dos seus filmes, em várias partes do mundo, como vai acontecer no novo Academy Museum em Los Angeles, projetado por Renzo Piano.
*
Homem enigmático de vários amores
Homem enigmático, indecifrável, mas ao mesmo tempo expansivo e com grande senso de humor. Um só casamento com Giulietta Masina, musa de vários dos seus filme que conheceu ao vinte anos e que lhe acompanhou durante toda a vida. Mas, ao mesmo tempo viveu muitos amores. Fellini não era somente apaixonado pelos filmes que realizava, mas também pelas suas protagonistas, como é o caso de Sandra Milo, um romance que durou 30 anos e até hoje, aos 87 anos, Sandrocchia, como é chamada aqui na Itália, chora de saudades de seu Federico.
Legenda Foto de Capa – Fellini com pintura de palhaço / Foto Peter Sorel
Adorei o texto, parabéns. Trouxe informações muito ricas que aproximam o circo e o cinema. Obrigado