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Balbúrdia: afeto e beleza em meio ao caos

Beatriz Antunes*, especial para Panis & Circus

São oito horas da noite quando o celular apita avisando que a transmissão do YouTube já vai começar. O pop-up que invade a tela do telefone, do computador e da televisões smart ao mesmo tempo é a versão contemporânea dos três sinais do teatro e do boa-noite do mestre de cerimônias, que antes da pandemia nos receberia sorrindo na entrada da tenda. Hora de juntar o público, baixar as luzes e apreciar um pouco de arte em meio ao caos. É esse respiro que a mostra de repertório da Cia. Artinerant`s vem oferecendo desde a segunda semana de maio e que vai se estender por mais outras até agosto.

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O espetáculo desta noite é Balbúrdia, criado em 2017 pela dupla Maíra Campos e Nié Pedro e dirigido por Lu Lopes. Como em Vizinhos (2014), apresentado na abertura da mostra, aqui também se trata de um casal protagonizando os encontros e desencontros que permeiam a vida a dois. Por meio de jogos corporais expressivos, acrobacias de solo e aéreas, números de equilíbrio, dança e teatro físico, o que ressalta é o afeto entre dois companheiros que se reinventam a cada momento para manter a parceria funcionando.

Mas nem tudo é sintonia. O que não falta são choques e desencontros no relacionamento desse casal. Ao longo de todo o espetáculo, o pêndulo oscila entre polos opostos, ora o jogo é da colaboração — e os corpos se apoiam e se equilibram um no outro e rumam juntos para um desfecho comum —, ora a interação se dá na base do desafio, e homem e mulher se valem de subterfúgios distintos para confundir e despistar o parceiro.

Se ele agarra uma corda para subir, ela dorme; se, mais tarde, ela canta suspensa no ar por um tecido de cordas — e aqui é preciso fazer uma menção à beleza do cenário e da iluminação que sustentam a performance de Maíra Campos nas acrobacias aéreas —, ele liga uma esmirilhadeira e em poucos segundos destrói o clima diáfano da mulher. Numa das sequências mais cômicas do espetáculo, ela surge com uma máscara de macaco enquanto ele equilibra pranchas de madeira no formato de um castelo de cartas. Investida do poder anárquico  da macaca, ela se põe a correr, pular e atrapalhar o trabalho do homem.

Centrado em números de apoio e equilíbrio, Balbúrdia tem seu ponto alto nos números em que os artistas se unem numa mesma intenção, como numa engenhosa sequência em que Maíra Campos, caminhando no arame, encontra os pés de Nié Pedro, que deitado de pernas para o ar numa rede abaixo do fio, cria com ela um passo espelhado que ancora o caminhar da artista, desenhando uma metáfora e tanto para o euilíbrio muito tênue, mas firme, que sustenta as relações de amor mesmo em meio a tanta balbúrdia.

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Vizinhos: emoção captada na tela e filmada na lona do Zanni    

Beatriz Antunes, especial para Panis & Circus

Na última sexta-feira, 7 de maio, a Cia. Artinerant’s, de Maíra Campos e Daniel Pedro, deu início à retrospectiva online de sua trilogia de espetáculos circenses composta por VizinhosBalbúrdia e Cachimônia. Serão diversas exibições no canal do YouTube da companhia até agosto.

Embora não seja possível vê-los em ação presencialmente, por conta da pandemia do coronavírus, tampouco em transmissões ao vivo, já que os espetáculos foram gravados, é emocionante mesmo assim acompanhar as apresentações através da tela, já que as imagens foram captadas sob a acolhedora lona do Circo Zanni, em São Paulo, e trazem um pouco daquela atmosfera para dentro de nossas casas.

Não é o picadeiro que desejaríamos pisar, mas é o de que podemos usufruir agora, e de todo modo a captação e a edição profissionais de Vizinhos, espetáculo que abriu a mostra, permitiram sentir até um pouco de nostalgia ao ver de relance os assentos vazios da arquibancada enquanto os artistas se apresentavam.

No espetáculo, um homem e uma mulher compartilham o espaço de uma casa ao longo de um dia. Ali, relacionam-se entre si e com os objetos cotidianos de maneira surpreendente, flertando com o surrealismo, como se nada fosse o que parece ser, nem mesmo um casal. Tanto uma poltrona pode se converter em trampolim e um arame em varal de roupas, quanto diversos outros podem habitar uma relação a dois. É com os objetos cênicos que os parceiros revelam seus amantes e suas paixões para o público, com eles dançam, ferem e também se aproximam um do outro.

Encarnando um intelectual atabalhoado e distraído, Daniel Pedro arrasta o olhar do público por suas levíssimas acrobacias de solo e esquetes de humor, algumas inesquecíveis como a do sofá que o engole e repele, em que o artista se funde a um hilariante e doce palhaço. Por sua vez, a aramista Maíra Campos dá vida a uma intelectual, uma escritora que se move com incrível exatidão e graça, mesmo levando a vida em cima de um “fio”. A performance impecável de Maíra – que não deixa de fora o célebre espacate sobre o arame – ganha corpo em cenas de dança e equilíbrio que universalizam a experiência da mulher que se desdobra entre o trabalho, a casa e os amores, sem deixar a peteca, ou nesse caso, o leque cair.

Já próximo do final, uma voz em off apresenta a história de um casal disruptivo e fascinante, bastante conhecido da intelectualidade francesa do século 20. Mas não se pode dizer que sejam eles a inspiração para o casal levado ao picadeiro por Maíra e Nié, pois no teatro físico da cia. Artinerant’s a relação vivida por essa dupla pode representar também as muitas parcerias que se encontram hoje em dia, tanto ou mais surpreendentes que a dos famosos “vizinhos” franceses.

*Editora autônoma e co-autora com João Bandeira de “De gatos e galáxias – Trajetória poética de Haroldo de Campos”

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