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Hugo Possolo em O Rei da Vela / Foto Asa Campos

 

Mônica Rodrigues da Costa*, especial para Panis & Circus

Você precisa conhecer o espetáculo “O Rei da Vela”, em cartaz no Espaço Parlapatões”, no centro da capital paulista. Trata-se de adaptação, feita por Hugo Possolo, da peça de teatro da autoria de Oswald de Andrade (1890-1954), um dos criadores do movimento modernista, ao lado de Mário de Andrade e outros famosos do início do século 20.

Cena de O Rei da Vela no Espaço Parlapatões / Asa Campos

 

A montagem conta a história do empresário Abelardo, que se casou com uma madame da sociedade, mas de família aristocrática falida. Ela tem irmãos homossexuais e extravagantes e trai o marido, que não se importa, pois ambos são partidários da vida poligâmica à moda dos povos felizes do matriarcado Pindorama, no tempo do descobrimento do Brasil.

 

Camila Turim (Heloísa de Lesbos) e Hugo Possolo (Abelardo1) / Asa Campos

 

Abelardo compra uma ilha para sua mulher e transfere intrigas sociais e perseguição ideológica para beira-mar, frequentada por tias ancestrais – uma delas, Tia Poloca –com Fernanda Maia, hilária, no papel–, e outras gentes das baladas das décadas de 20 e 30 do século passado.

A montagem “O Rei da Vela” da companhia dos Parlapatões, Patifes & Paspalhões, parece despretensiosa, não reivindica para si a proposta de mudar o mundo ou a linguagem do teatro como fez Oswald de Andrade ao criar o texto; a montagem representa hoje o texto do poeta, criador da Poesia Pau-Brasil e do movimento estético-filosófico Antropofagia. Para lembrar o pesquisador do teatro Peter Szondi, cada época constrói sua forma de dizer a história do presente.

 

Enforcado em dívidas em O Rei da Vela / Asa Campos

 

Dirigida por Hugo Possolo, a peça segue a “composição cubista” (construída com justaposições) da poética oswaldiana: no palco, por exemplo, estão praticamente no primeiro plano (ou se deslocam para lá para compor as esquetes) todos os objetos de cena, o escritório dos banqueiros Abelardo I e Abelardo II, a jaula dos endividados prevista pelo autor modernista, o papagaio da dívida e dos juros de empréstimos escorchantes, as velas da indústria nascida da falta de energia elétrica na cidade.

 

Quadro vivo na cenografia de Marcio Medina / Asa Campos

 

O cenógrafo (Marcio Medina) construiu o design do espetáculo como o autor original montou as rubricas, por superposições, em operação paratática — não há subordinação de planos. Telumi Hellen brincou com paradigmas da moda de então para criar os figurinos.

 

Renata Versolato como a cantora Dona Cesarina / Asa Campos

 

Oswald Andrade representou com a blague modernista e macunaímica (de seu interlocutor Mário de Andrade) os problemas que presenciou no Brasil e sua ideologia burguesa, com arte e moral.

 

Nando Bolognesi como Oswald de Andrade / Asa Campos

 

Na adaptação de Possolo, o palco modernista é carnavalizado, ou seja, vira mito e rito, da forma como a cultura popular brasileira a compreende (Bakhtin, confira aqui o significado do conceito).

Décadas depois de Oswald de Andrade, Zé Celso, do Teatro Oficina, revoluciona o teatro de mímese (imitação) dos anos 60 com sua montagem antropofágica do Rei da Vela, industrial fominha que se aproveita da miséria da população para fazê-la sofrer mais um pouco.

 

Cena de O Rei da Vela que remete a montagens de Zé Celso / Asa Campos

 

Embora contemporânea – foi encenada pelo próprio Zé Celso em 2018 -, a montagem do Teatro Oficina virou paradigma de um gênero de teatro que Zé Celso inventou para o Brasil.

A direção de Possolo se vale das duas referências, que são chaves para entrar no mundo parlapatão, e acrescenta a atuação e o ponto de vista do palhaço. Hugo vale-se da peça de Oswald para mostrar com técnicas do circo o mundo paulista modernista de então, com indústria emergente e crise do café, mas financiando a cultura, por exemplo, a Semana de Arte Moderna de 1922.

 

Conrado Sardinha, Hugo Possolo e Camila Turim / Foto Asa Campos

 

Com método brechtiano explicado no palco, a direção de Possolo e a direção musical de Fernanda Maia acertam ao entrelaçar as imagens visuais e sonoras do mundo de hoje ao da época, trocando os ídolos burgueses e de massa. Tudo entra no circo, e a deusa Anitta da MPB, aparece de relâmpago. Caetano Veloso irradia tropicália a partir do ponto de escuta do espetáculo.  

 

Champagne na morte de Abelardo 1 / Foto Asa Campos

 

Possolo reuniu em um os três atos da peça de Oswald de Andrade, e começa do fim para o início. O capitalismo é o personagem principal, corporificado em Abelardo I e Abelardo II, os cobradores de juros injustos à turba de devedores, que depois de tumulto se instala na jaula da opressão, isto é, na porta do escritório da dupla vilã para renegociar dívidas.

 

Crítica a situação de miséria material e intelectual do Brasil / Asa Campos

 

A peça de Oswald é concebida com uma ironia que destrói tudo na sociedade e Possolo a atualiza: genocídio, desrespeito à diversidade, intolerância, desemprego, fome, pobreza, censura, preconceito, destruição ambiental e escravidão.

Dá-se um hibridismo entre os dois tempos socialmente análogos, em operação antropofágica como Oswald de Andrade previu. A política aqui é a própria ironia de um Brasil sem devir, sem-vir-a-ser.

 

Possolo e seu papel híbrido / Asa Campos

 

 

O trabalho de ator

Hugo Possolo faz um papel híbrido. Por um lado é o Piolim, o palhaço referência para a turma da Semana de Arte Moderna e para o mundo parlapatão. Por outro lado, Possolo trabalha como o ator brechtiano, com a consciência de Alfred Jarry (citado nominalmente por Oswald) e combate a censura velada no Brasil.

Hugo dirige o elenco do mesmo modo. Assim, constrói personagens tipos, sem profundidade psicológica, mas com densidade política: a madame, a alpinista social, o devedor, o empresário, o industrial, o ator, o intermediário, o homossexual, entre outros, o político, do modo como Oswald de Andrade os retratou. Um exemplo dessa construção é a personagem Heloísa de Lesbos, mulher de Abelardo, interpretada por uma atriz (Camila Turim) que pouco revela sentimentos, seja compaixão ou felicidade.

O diretor funde os personagens Abelardos e acrescenta ainda a figura de um narrador, numa intromissão da épica para representar a intolerância e uma humanidade devastada.

 

 *Mônica Rodrigues da Costa, jornalista, professora e poeta, doutora em comunicação e semiótica (PUC/SP) e crítica de teatro e circo.

 

Fernanda Maia como Dona Poloca / Asa Campos

 

Ficha técnica

Texto: Oswald de Andrade

Adaptação e direção : Hugo Possolo

Elenco: Hugo Possolo, Camila Turim, Alexandre Bamba, Nando Bolognesi, Fernanda Maia, Tadeu Pinheiro, Fernando Fecchio, Conrado Sardinha, Fernanda Zaborowsky, Renata Versolato, Daniel Lotoy

Músicos: Abner Paul, Léo Versolato, Daniel Warschauer e Evandro Ferreira.

 

Serviço

Em cartaz no Espaço Parlapatões até 15/7/18. 100 lugares. 85 minutos. Classificação: 14 anos. Sextas e sábados, às 21h, e domingos, às 19h. Endereço: praça Franklin Roosevelt, 158, Consolação, centro, tel. 3258-4449.  Ingressos: R$ 30 e R$ 15 (sextas) e R$ 40 e R$ 20 (sábados e domingos).

 

Legenda Foto de Capa – Cena de O Rei da Vela no Espaço Parlapatões / Asa Campos

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