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Formas femininas no cubo geométrico

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“Mônica Rodrigues da Costa*, especial para o site Panis & Circus

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Está disponível no YouTube, clicando aqui, o vídeo do espetáculo “Fecunda – Uma Opereta Tropicalista Circense”, montada apenas por mulheres artistas de circo, teatro e música e transmitida na web para todos os públicos. Oportunidade para conhecer o que é arte, brincar de achar signos dentro de outros signos, gags visuais e citações.

A estreia da opereta online aconteceu nos dias 15 e 16 de dezembro de 2020, durante a Noite de Gala do Circo, e foi filmada no Theatro Municipal de São Paulo.  

“Fecunda” é um espetáculo circense tradicional com números sucessivos, mas contendo experimentos e referências à vanguarda europeia a partir da metade dos anos de 1800 e à música vinda do Nordeste. Traz o samba do Rio e o baiano. Representa as mulheres do Oiapoque ao Chuí, de Leste a Oeste. Cada número é peculiar e todos eles apresentados com excelência. A trilha sonora seja instrumental, seja com canções com letras, seja com os tambores em diálogo com o sagrado, traz a força dos elementos.

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Palhaça Rubra no Theatro Municipal de São Paulo

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A Palhaça Rubra, personagem de Lu Lopes, inicia “Fecunda” com “Sonho Meu”, de Dona Ivone Lara e Délcio Carvalho, de 1978, ao som de pandeiros, muita percussão e suingue.  

Efeitos visuais atraentes e abstratos aparecem na iluminação (Gita Govinda) e na cenografia (Lu Lopes e Mônica Alla) e compõem a cena no palco do Municipal com um elevador meio transparente visto ao fundo, que também recebe as projeções.

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Cenário múltiplo que oferece ações simultâneas e variados pontos de vista

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O resultado é uma leitura metonímica do espetáculo, que faz o espectador imaginar como as atrações convivem num palco, no estilo do Cirque de Soleil, que oferece várias ações simultâneas e variados pontos de vista. O circo sempre foi misturado e múltiplo, ou híbrido, conceito que marca as artes plásticas, visuais.

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Maíra Campos: salto em um fio ao som da composição erudita de Erik Satie

A aramista Maíra Campos aparece entre os primeiros números da noite dando forma a uma personagem-figurino que depois de ganhar vida desliza no arame tenso com as mangas maiores que os braços e a barra das calças maior do que a pernas, ao som de uma composição leve e ondulada em sua melodia, do músico erudito e de vanguarda Erik Satie (1866-1925). Maíra exibe habilidades, do espacate aos voos, saltos e deslizamentos – o equilíbrio por um fio.

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Carol Rigoletto e os malabares no ritmo de “Frevo Mulher”

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A noite é também do jogo de malabares. Carol Rigoletto tem beleza, perícia técnica e graciosidade ao som de “Frevo Mulher”, de Zé Ramalho, com letra simbolista, misteriosa, compondo imagens no estilo do surrealismo: “Quando o tempo sacode a cabeleira/ a trança toda vermelha…”. Ao mesmo tempo com a expressão bem brasileira de fé e superstições, como “a folha de não-me-toque e o medo da solidão”.

“Fecunda” mistura canções populares com eruditas, como é costume no circo, de modo bem-humorado. Dança e coreografia. Números aéreos em espirais e lustres de cristal e de ginástica de solo, cordas, bambolês e malabares, tudo no ar. Apresenta ainda ilusionismo, com o quick change, um quadro de strip-tease com uma anã que sobe em uma cadeira e poucas outras atrações excêntricas, da tradição da mulher barbada ou da Monga.

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Número aéreo criado por Monica Alla, do Grupo Ares 

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Acrobatas negras fazem contorcionismo e movimentos de aéreos em aparelhos de bambu. Elas têm figurinos fora do padrão Kitsch das malhas circenses. Seus maiôs listrados parecem corporificar a geometria e sua dança o sentido sagrado e artesanal da arte afro-brasileira. Orixás femininas são cantadas na voz gravada de Maria Bethânia: “Eu agora vou dançar/ para todas as moças/para todas as Ayabás/ para todas elas”. Muito tambor e imaginação gestual — de Euá, Iansã, Oxum. O momento é propício para festejar a figura feminina negra.

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Acrobacia em aparelho de bambu na cadência de Bethânia  

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A Palhaça Rubra canta “Ave Maria” na língua inventada dela, criando seu próprio gênero, escalafobético. Ela dedica o espetáculo a “todas as Marielles, Marianas, Djamilas, de nós todas, Spirulinas, Mafaldas, Emily e Manelas, Só Ladies, círculo fecundo infinito de autocriação, forévis”. Rubra traduz o que quis dizer na curadoria musical e na própria voz, tranquila, pronunciando bem as palavras, as rodas de capoeira, a Paraíba de Zé Ramalho, São Paulo megalópole, o sotaque conubardo do presente e a canção “Babalú” (Margarita Lecuona), da música popular cubana.

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Palhaça com botas no espetáculo dedicado Spirulinas, Mafaldas, Emily e Manelas

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As artistas inventam números de lona em velhos aparelhos, constroem novos e trazem o circo para a cidade. Há liras de figuras geométricas em 3D, cubos, aparelhos de coreografia e caixas com três bailarinas iluminadas. Dentro da caixa, com design futurístico, essas dançarinas executam diferentes formas.

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Aparelho de coreografia construído para a imaginação gestual de pássaro 

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Os bambolês brincam um pouco com a ideia do filme Le Ballet Mécanique, de 1924, do vanguardista francês Fernando Léger, por exemplo, com figuras circulares todas girando e se sucedendo.

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Bambolês lembram o filme Le Ballet Mécanique

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Há passagens que têm intenção didática, dedicada às jovens espectadoras, como a da canção do grupo Francisco, el Hombre, “Triste, Louca e Má”. Outras são como lições de esperança, quando a Palhaça Rubra canta “Fé Cega, Faca Amolada” (Ronaldo Bastos e Milton Nascimento) e todas acompanham.

Quando o elenco aparece em determinada cena parece que a gente está diante de uma cena de um filme do Fellini (1920-1993).

A palhaça Rubra na pessoa de Lu Lopes retoma a ideia, a arte do mulato Caetano e do preto Gilberto Gil. O circo feminino está armado. E que tudo mais vá pro inferno.

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Artistas, equipe de criação e técnica de Fecunda

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Dupla de criação

A opereta foi criada e concebida por Mônica Alla, que fez a direção circense, em parceria com Lu Lopes, que está na banda ao vivo com voz e berimbau e assina a direção geral. O time de artistas, as coreografias (Weidy San), a preparação técnica (André Fratelli) são de tirar o chapéu. Têm o apoio do Circo Acrobático Fratelli, conforme consta nos créditos do programa.

Elenco: Adriana Telg e Barbara Francesquini (bambolê), Diny (Ilusionista), Gabriela Germano (aéreo e bailarina acrobata), Thaina Ferroldi (contorcionista), Lala Teles (multicordes e aéreo), Maíra Campos (aramista e multicordes), Mai Yamachi (força capilar), Nay Fernandes e Priscila Menucci (performance), Tania Oliveira (parada de mão), Thalia Bombinha (drag queen) e Vulcania Pokaroupa. 

Piano e voz (Camila Lordy), percussão (Léo Rodrigues) e voz e berimbau (Lu Lopes).

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Camila Lordy no piano, Léo Rodrigues na percussão e Lu Lopes, com berimbau

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*Mônica Rodrigues da Costa é jornalista, crítica de arte e professora da FAAP e da PUC 

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