Mônica Rodrigues da Costa*, especial para Panis & Circus
Bloom (flor), da Cia. LaMala, encenação de sete atores circenses em que predomina a dança e acrobacias clássicas recriadas, explora a técnica circense mão a mão e simboliza a interação entre as pessoas e o compartilhamento de experiências.
É preciso confiança na humanidade no século 21, parece dizer o espetáculo. Bloom representa também força e persistência, já que saltos mortais, estrelas e pirâmides humanas, de difícil execução, combinam-se repetidamente com movimentos inventados, ao som de uma trilha (Estúdio da Coruja) que imprime velocidade e cadência na busca por perfeição.

Com dramaturgia de Marina Bombachini e direção de Carlos Cosmai, o espetáculo sai da inação para movimentos paulatinos de três mulheres sob a luz fosforescente. É a cena inicial. Outros acrobatas entram. Cada ator faz um estilo gestual ao som de percussão com tambores, bateria e guitarra. A maioria das músicas é instrumental.
Sem diálogos verbais, o corpo dos atores narra a história. O elenco constrói com esmero a metáfora que dá nome ao espetáculo. Várias cenas realizam a simulação da forma da flor.

Os atores como pétalas coloridas em contínua movimentação. A emoção que a peça transmite apresenta o sentido figurado do florescimento.
Como floresce o coletivo? No enredo que responde a essa pergunta, cada ator realiza as acrobacias que domina, que se somam a uma dança que os transforma num corpo único.
A estratégia começa no tratamento dado ao palco – um retângulo perfeito acolhe uma sinfonia orgânica e anatômica de curvar-se, encolher-se como no ventre materno, e estender-se ao máximo, apontando para o sol ou a imensidão do espaço sideral.

O palco é limitado ao fundo por bancos com canos altos, usados como aparelho de caminhada e mais algumas evoluções.
O espetáculo desafia a altura e por isso a ação recíproca é a coluna vertebral, como nos momentos em que simula o rito festivo ou de guerra de tribos indígenas. Brasileiras? Arquetípicas? Em determinadas passagens, evoca a dança dos orixás tanto quanto mimetiza uma atração de cabaré, com passos teatralizados e toques de picadeiro.
A expressão conjunta dos artistas evoca múltiplos sentidos do ser humano e a simbologia da flor — um dos ícones mais amados da literatura lírica ou da pintura de natureza-morta.
Flor e feminilidade já se completaram historicamente. Os românticos a cantaram e desenharam, os modernistas a ironizaram, os músicos populares e escritores, como Vinicius de Moraes (1913-1980), a imortalizaram (Para uma menina com uma flor).

Em alguns momentos “Bloom” exprime o corpo contorcionista e mistura-o ao tecido das redes sociais com as quais convivemos, entrelaçando ideias, letras, números e emoticons em três dimensões.
A acrobacia sai da zona de conforto do automatismo do circo tradicional, fica experimental e inclui os figurinos (Juli Buli) como partes das atrações.
Os materiais da indumentária são redes tramadas de verde, lilás, azul vermelho e amarelo. O entrelaçamento do design faz parte das roupas e destaca o cotidiano na bermuda do skatista, na calça larga e pesca-siri, do camponês, quebrando o padrão hegemônico da moda.

Regatas e coletes por cima de camisetas e malhas libertam os movimentos. Saias esvoaçantes propõem a liberdade de gênero quando os homens do elenco as vestem sobrepostas às roupas de ginástica.
Lúdicos, os homens compõem uma cortina de saias e essa gestalt dá volume ao espaço cenográfico. Esvoaçantes, como leques transparentes, é de encher os olhos.

Em um das cenas os atores brincam de aumentar um corpo atrás da cortina, aparecem e desaparecem, em piadas típicas da lona.
As acrobacias se misturam a passos codificados, muitos criados, outros mesclando a prática circense à arte marcial da capoeira, com chutes, cabeçadas, rasteiras, joelhadas, cotoveladas.
Em “Bloom” os artistas de ponta cabeça se apoiam direto na cabeça (normalmente o apoio nessa posição divide o peso entre o alto das costas, o pescoço e um pouco da cabeça) em demonstração de força muscular e equilíbrio.
Em outro quadro um homem faz saltos mortais e para no alto. Ao cair é aparado pelo grupo. Todos sobem nos ombros uns dos outros em inúmeras atrações.
Os setes atores dançarinos acrobatas se movimentam cada um de forma particular, mas quase sempre finalizam a coreografia no grupo.

Para esses artistas os números do circo não expressam somente a exibição da técnica, o gênero não teria força se não explorasse a criatividade, afirmam muitos especialistas.
Uma atriz deita e se enrola no próprio corpo. Um ator corre, outro faz estrela e mais uma atriz realiza movimentos leves e contínuos. Estão lado a lado mostrando o que sabem expressar individualmente, porém numa configuração coletiva de linguagens que se inter-relacionam.
Os artistas pedem palmas do público e cantam a capela a canção folclórica “Peixinhos do Mar”: “Quem te ensinou a nadar/ foi o peixinho do mar”…
Há um conjunto de cenas em que o corpo é uma caixa sonora multiplicadora de ritmos. Outra série remete a uma roda de samba, em que alguns dançam enquanto os demais batem palmas e entoam onomatopeias.

A dinâmica de Bloom conduz o deslizar dos corpos no mar ou o salto felino nos ares. Andar sobre os próprios corpos é uma ação bastante explorada, assim como caminhar na cabeça dos colegas, o que alude à fábula do macaco e do crocodilo, que tem versões norte e sul-americanas.
Nela os crocodilos formam uma fila de um lado a outro do rio e o macaco passa em segurança para a outra margem para pegar bananas, enganando os répteis.

O intenso jogo com “portôs” fazem os movimentos mão a mão evoluírem para “mão a pé”, “pé a cabeça” ou até “pé a costas”. Um ator serve literal e simbolicamente de escada para o outro.

Números de solo mesclados com os de grupo encantam a plateia, sobretudo quando os artistas estão deitados em fila e um gira sobre o corpo do outro. As façanhas de lançar-se a distâncias arriscadas e aparar o corpo do outro dão suporte a um coletivo que caminha junto, se olha e se expande.

Se no circo a partir do século 18 todo movimento era ambíguo, portando o gestual grotesco ou o de façanhas arriscadas, a poética de “Bloom” afirma neste 21 a corporificação da identidade grupal por meio de seu estilo híbrido.
A récita de um poema exige a atenção das pessoas contra as “armadilhas do ar/ pois alguma coisa pode dar errado/ O mesmo dentro que conduziu debandou/ Tudo o que se construiu desabou…/ O que nos faz invencíveis”…, manifestam os versos.
Como era de se esperar o show termina no ápice alegre e percussivo da dança, com saltos mortais e confetes.

Trajetória da Cia. LaMala
A Cia. LaMala esteve em temporada em fevereiro de 2020 no Sesc Consolação com o Teatro Anchieta lotado. O grupo tem 15 anos e nasceu do trabalho de Marina Bombachini e Carlos Cosmai, acrobatas especializados na técnica circense mão a mão. Os dois são também professores. Eles se conheceram fazendo teatro em Santo André, um dos polos fortes de criação dramática no Estado paulista.
Em 2019, a produção do grupo selecionou cinco multiatores para compor o elenco de “Bloom” e agora os sete integram a companhia: Marina e Carlos, Dyego Yamaguishi, Jaqueline Macedo, Luka Ianchity, Marilia Mattos e Wesley Peixinho.
A Cia. LaMala tem no repertório “Ilhado” e “Playground”, entre outros espetáculos. Os maiores diretores da cena teatral do Sudeste trabalharam com a Cia. LaMala — Domingos Montagner, Fernando Sampaio, Lu Lopes, Bruno Rudolf, Marcelo Lujan e Ronaldo Aguiar –, que participou de diversos festivais, como Fira Trapeze de Reus, na Catalunha (Catalunya), e o Festival de Circo do Brasil em Recife, entre outros.

Ficha técnica
Elenco: Carlos Cosmai; Dyego Yamaguishi; Jaqueline Macedo;
Luka Ianchity; Marilia Mattos; Marina Bombachini e Wesley Peixinho.
Criação: Cia LaMala. Direção: Carlos Cosmai. Dramaturgia: Marina Bombachini.
Desenho de luz: Sylvie Laila. Assessoria
coreográfica: Cia. Pé no Mundo. Figurino: Juli Buli. Trilha sonora original: Estúdio da Coruja (Estevan Sinkovits e Ricardo Prado).
Preparação de percussão corporal: Ronaldo
Crispim. Marcenaria: Studio27zero8. Produção executiva: Talita Vecchia.
Duração: 50 minutos.
*Mônica Rodrigues da Costa é crítica de teatro do Guia da Folha de S.Paulo e deste site, professora doutora e poeta.