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Travessia lírica do poeta chileno

Pablo Neruda (1904-1973), poeta da prosa, do verso amarrado na sintaxe cotidiana. Coloca os caracteres da frase e da oração na ordem gramatical direta, como no poema “Regressos”:

“Dois regressos se uniram à minha vida

e ao mar de cada dia:

de uma vez afrontei a luz, a terra,

certa paz provisória. Uma cebola

era a lua, era o globo

nutrício da noite, e o sol cor de laranja

submerso no mar:

uma chegada

que suportei, que reprimi até agora,

que eu determinei, e por aqui fico:

pois agora a verdade é o regresso.”

Mas a ordem sintática é perturbada pela ausência de ponto final, de encerramento da ideia, devido ao encadeamento de dois-pontos. A própria ideia do poema é paradoxal.

O corte na frase faz da prosa poesia; esse procedimento transforma uma oração em verso. A poesia, bem sabemos, constrói imagens entre o sentido e a sintaxe.

Adiante, o poeta afirma: “minha única travessia é um regresso”.

A ordenação corriqueira do falar é rompida por imagens ambíguas, de significado fugidio e plástico: a lua, uma cebola que alimenta a noite.

Operações sintáticas e semânticas assim fazem de Neruda um artesão das palavras.

Com a retórica do comício, muitos poemas de Neruda se aproximam dos de Walt Whitman, de quem ele se dizia fã.

“Jardim de Inverno” (1971-1973), obra póstuma do poeta chileno”, traz “Regresso” e outros poemas do final da vida, que concentram racionalmente o conhecimento de Pablo Neruda sobre poesia.

Foi publicado pela L&PM (Porto Alegre, 2005) com tradução de José Eduardo Degrazia, que escreveu a apresentação e disse que Neruda “podia ser político ou lírico, épico ou cotidiano, bem como variar a forma do poema conforme sua intenção e sentido: grandes poemas de metro largo e variado como nas Residências e no Canto Geral, ou poemas descritivos e sintéticos como nas Odes”.

 “Confesso que Vivi”

Em “Confesso que Vivi” (1974), livro de memórias do autor, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 1971, com o capítulo “Caderno 11 – A Poesia é um Ofício”, Neruda amplia a percepção de seu modo de produzir e demonstra excelência na arte da frase.

Comenta mais o sentido da poesia do que sua forma construtiva. Na seção com o título “Versos Curtos e Longos”, o autor fala da missão do poeta, que vê metaforicamente, como um leitor do mundo: “O poeta civil de hoje continua sendo o poeta do mais antigo sacerdócio. Antes compactuou com as trevas e agora deve interpretar a luz”.

Na dedicatória de “Confesso que Vivi”, escreveu: “Talvez não vivi em mim mesmo, talvez vivi a vida dos outros”.

Na seção “O Poder da Poesia”, fala da recepção de seu poema “Novo Canto de Amor a Stalingrado” por cerca de 50 homens reunidos pelo sindicato de carregadores da Vega. Aborda a época presente como a de “guerras, revoluções e grandes movimentos sociais”.

Na passagem abaixo, da seção “Vivendo com o Idioma”, define a língua:

“Não se pode viver toda uma vida com um idioma, vendo-o em sua maior dimensão, explorando-o, alisando-lhe o pêlo e a barriga sem que esta intimidade faça parte do organismo. Assim aconteceu comigo em relação à língua espanhola. A língua falada tem outras dimensões; a língua escrita adquire uma dimensão imprevista. O uso do idioma como veste ou como a pele no corpo, com suas mangas, suas emendas, suas transpirações e suas manchas de sangue e suor, revelam o escritor. Isto é o estilo.”

“Confesso que Vivi” foi traduzido por Olga Savary e publicado em 1977 pela editora Difel, do Rio de Janeiro.

(Mônica Rodrigues da Costa)

 

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