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Luciana Gandelini*

No dia 1º de setembro de 2021 (quarta-feira), às 19h, foi a vez do Circo e Teatro Palombar, grupo criado em 2012 no bairro Cidade Tiradentes (Zona Leste de São Paulo) captar os olhares do público para a arte da periferia com CircomUns.

O espetáculo foi uma das quatro estreias mundiais do CIRCOS – Festival Internacional de Circo do SESC que neste ano foi adaptado para o formato on-line. A transmissão foi realizada pelo Youtube e Instagram, ao vivo do SESC Santana.

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Em CircomUns, estudantes, motoboys, artistas de rua, eletricistas e tantas outras pessoas comuns, que por vezes passam despercebidas no dia a dia das cidades, viram protagonistas de suas histórias ao transitar pela luta diária em busca do sustento, driblando contextos desfavoráveis e a precarização do trabalho, com sagacidade e persistência.

É o caso do Mágico Mandarino, um artista de rua que entretém pessoas com números de ilusionismo, mas que precisa lidar com os julgamentos de quem não vê a arte como um trabalho ou com a única coisa que estraga uma apresentação de rua: a chuva.

Ou de Super Cleitinho, personagem fruto dos anseios de um trabalhador que enfrenta sua sina diária dentro de um transporte coletivo e, ao ouvir uma linda música em seu fone de ouvido, se permite sonhar em ser um super- herói e tocar música nas alturas.

Se equilibrando em um monociclo ao mesmo tempo em que toca sanfona e trompete Super Cleitinho surpreende o público, em uma metáfora à vida sofrida de tantas pessoas trabalhadoras que precisam se equilibrar para lidar com as dificuldades rotineiras.

“Mas trabalhador pode ser super-herói?” é a indagação que se ouve ao fundo. E entre tantas pessoas trabalhadoras da cidade, surge um entregador de aplicativos em sua moto ao som de rap. Com o GPS sinalizando: “Você chegou ao seu destino!”, a enorme caixa de entregas vira um objeto de acrobacias, remetendo a ginga com que tantos entregadores circulam pela cidade.

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Um rádio que anuncia o crescimento da taxa de desemprego, ao passo que um catador de recicláveis “olha no invisível e faz a escuridão virar luz”, algo que o Palombar entoa em coro, retrata de forma sensível e poética a insistência em sobreviver contida em gestos corriqueiros do cotidiano.

Entre idas e vindas, chegadas e partidas, a pé ou no transporte público, as pessoas que precisam literalmente se equilibrar, driblar obstáculos, fazer malabares e acrobacias com o que lhes é possível, vão demonstrando que ainda tem espaço para vislumbrar sonhos e desejos.

O espetáculo conta com fortes referências das culturas urbanas, como a pixação, o breakdance e até os estilosos rádios Bomboox, aparelhos portáteis que viraram símbolo da cultura hip hop.

A trilha sonora composta por sons da cidade e ritmos urbanos como o hip-hop, é embalada também por intervenções musicais tocadas ao vivo pelo elenco, com uso de saxofone, trompete e sanfona.

“Mais contemporâneo impossível!” comenta uma espectadora pelo chat enquanto vibra com as peripécias da trupe circense que consegue trazer para a lona o ambiente urbano em sua essência.

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“Cidade Tiradentes, Zona Leste, São Paulo, Brasil” é assim que o Circo e Teatro Palombar aponta a localização exata da fonte de inspiração para a criação deste espetáculo.

CircomUns é o olhar sensível destes artistas para o bairro em que vivem, a partir de suas vivências, enxergando as poéticas deste território e a potência de vida de seus moradores, traduzindo-as para o universo circense e exaltando que pessoas comuns podem sim ser artistas.

E é com a mesma sensibilidade que o grupo encerra a apresentação de estreia, exaltando a poesia periférica com muita força e emocionando a plateia virtual.

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O Panis & Circus conversou com o diretor Adriano Mauriz sobre a participação no CIRCOS 2021.

CircomUns valoriza o protagonismo de pessoas ditas “invisíveis” em São Paulo com muita sensibilidade e poesia. Conte um pouco sobre esse processo de criação e observação do território da Cidade Tiradentes. Como essa relação com o bairro se reflete na poética do espetáculo?

Adriano: A Cidade Tiradentes fica longe do centro, por isso grande parte das pessoas que vivem no bairro trabalha em outras regiões com mais oportunidades e voltam apenas para dormir. Essas pessoas que observamos são parte da nossa vida. São nossas mães, pais, pessoas da família, com nome e sobrenome, histórias e narrativas, mas que muitas vezes são vistas apenas como números, entrando nos índices de hospitais lotados, evasão escolar, desemprego. Mas são pessoas com potências, que consideramos heróis e heroínas, pois, para serem “iguais”, precisam fazer em dobro.

E o que é ser artista neste contexto foi algo que apareceu muito forte no processo de criação, assim como a questão do trabalho, já que até as ruas principais do bairro são nomeadas como “Avenida dos Metalúrgicos”, “Avenida dos Gráficos”, “Avenida dos Têxteis”. No contexto pandêmico, essa realidade é formada por pessoas que não tiveram o privilégio de trabalhar em casa. Então, tudo isso refletiu na criação, além do fato de que sendo uma pessoa trabalhadora, muitas vezes a válvula de escape é o sonho, criar essa realidade onírica.

Como é levar ao palco de um festival internacional de circo tão importante como o CIRCOS (SESC), em um momento tão complexo como este que estamos vivendo, um espetáculo que reflete exatamente a realidade das periferias, de grande parte da população de São Paulo?

Adriano: É uma conquista imensa em muitos sentidos. Ficamos muito emocionados, nos sentimos vivos, apesar de termos sentido muito a falta do público e acreditarmos que o espetáculo tem potência para crescer com a interação com as pessoas.

Nós temos cinco espetáculos criados a partir da pesquisa de linguagens diferentes (drama, comicidade física, teatro de rua, os excêntricos musicais, entre outras). Mesmo assim, nós nos sentíamos um pouco à margem por não participar de grandes festivais, por talvez não estar dentro deste universo do circo contemporâneo. O CircomUns flerta com essa contemporaneidade dos festivais, mas do ponto de vista de que contemporâneo é o que é do nosso tempo. E do nosso ponto de vista, a partir do nosso lugar de fala, o que vemos como contemporâneo é a precarização do trabalho, a questão da manipulação da informação de massa, entre outras questões. Então,  buscamos esse circo contemporâneo que também é do povo, é horizontal, que mostra que as pessoas comuns também podem ser artistas. E isso, celebrado em um festival tão importante quanto o CIRCOS, é incrível, pois significa que as pessoas periféricas podem estar em qualquer lugar. Podem estar num festival como esse, falando de suas potências, da potência que é a periferia. E fazer arte em um momento em que as pessoas estão com a saúde mental abaladas em razão da pandemia, foi um alento.

CircomUns brada: “Artistas de histórias doloridas.. Poesia, Periferia”. Como a produção artístico-cultural das periferias ajuda a construir outros imaginários sobre esses locais.

Adriano: A periferia é um lugar que tem muitas pautas: identidade, pretitude, gênero, precarização, saúde alimentar, evasão escolar, entre tantas outras. É muito importante demonstrar como nós conseguimos nos organizar de maneira coletiva para trazer um tema que era comum a todos e manifestar esse anseio de falar sobre o trabalho e sua precarização de uma maneira artística, subjetiva e sensível. Demonstrar que quem é da periferia pode produzir arte de uma maneira bonita e sensível, manifestar imagens poéticas, refletir seus anseios. Conseguimos tocar no espetáculo a saúde mental, o preconceito, a questão dos sonhos, tudo que esses artistas queriam dizer.

Algo mais que você queira comentar?

Adriano: No Palombar os artistas fazem tudo: tocam, atuam, executam os números de habilidades. É quase que um mutirão que costura a lona em conjunto. Uma afirmação da coletividade, da periferia e de uma maneira contemporânea de se fazer um circo popular.

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Ficha técnica

A direção de CircomUns é de Adriano Mauriz e o elenco é formado por David Wiliam, Giuseppe Farina, Guilherme Torres, Henrique Nobre, Leonardo Galdino, Marcelo Nobre, Paulo Santos, Rafael Garcia e Vinicius Mauricio.

Os integrantes do Circo e Teatro Palombar são parte de uma geração de grupos circenses formados em escolas de Circo Social e encontraram fora da lona um lugar para exercer o trabalho artístico.

*Jornalista e assessora de comunicação na área cultural – especialmente das artes circenses

Fotos Leonardo Galdino

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