Mônica Rodrigues da Costa*, especial para Panis & Circus
Aproveite algumas sextas dos próximos três meses para conferir a 1ª Mostra de Repertório da Artinerant’s, grupo de Maíra Campos e Daniel Pedro, ou Nié, acrobatas que também integram o Circo Zanni desde 2004. A companhia apresenta a trilogia de espetáculos “Vizinhos” (2014), “Balbúrdia” (2017) e “Cachimônia” (2019) de modo remoto e gratuitamente. As montagens foram filmadas na lona do Circo Zanni, em março, sem público em função da pandemia, e a Artinerant’s exibe os filmes no canal do YouTube da companhia.
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Canal do Youtube de Artinerant’s – https://www.youtube.com/channel/UCyg_cfCbDO0eFDdehmitMtg
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Em junho, tem Vizinhos nessa próxima sexta 18/06, Balbúrdia em 25/06. E em julho, no dia 2, Cachimônia.
Como o circo teatro de antigamente, são peças satíricas, mas leves. O enredo da trilogia trata da vida urbana de um casal no ambiente do picadeiro. Os atores fazem um pouco de tudo conforme a tradição circense, são músicos, dançarinos, cômicos, equilibristas, acrobatas, mímicos e performáticos. A direção é de Lu Lopes, a palhaça Rubra, atriz premiada, que realiza os próprios espetáculos. E no caso de Cachimônia contou também com a direção de Tatto Villanueva – ator, palhaço e diretor argentino reconhecido por sua excelência na arte de atuar e ensinar a arte circense.
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O grupo Artinerant’s completa sete anos neste 2021. “Vizinhos”, peça de teatro físico (com força nos movimentos) e sem diálogos, retrata a rotina de um homem e uma mulher numa casa. Os dois atores em cena misturam as ferramentas que usam no picadeiro com o mobiliário doméstico, que se modifica diante do encontro explosivo.
O aparelho de arame tenso da equilibrista tem o fio usado como varal, a cama serve para fazer acrobacias e coisas parecidas ocorrem com todos os objetos do palco. A trama é criativa e por isso gera ambiguidades. São vizinhos ou estão casados?
No século 21 a arte é polissemia mesmo, e experimental. As duas primeiras décadas começaram com o paradigma da inovação. A arte hoje remete a outras artes, sobretudo às de vanguarda na Europa a partir da metade dos anos de 1800 – simbolismo, dadaísmo, cubismo, surrealismo e outros ismos.
A trilogia produz imagens inéditas no circo que nos fazem estranhar o cotidiano. “Balbúrdia” mostra o espírito heterotópico, opostos, disparidades. “Cachimônia” opera como síntese das peças anteriores.
Daniel Pedro dança para completar a performance acrobática e a dançarina cumpre seu destino ao andar como macaca, coelha, touro, cabra ou gente, mas sobretudo como a aramista que faz de qualquer superfície estirada um fio para dar os passos da experiência, única a cada vez, de equilíbrio no arame.
A explosão significativa é maior em “Balbúrdia” devido ao seu pendor para o caos, que expande o rearranjo paródico dos objetos. Para alguns, como o filósofo Jean Baudrillard (1929-2007), as peças seriam o simulacro que aparece em todas as esferas da vida, o espelho com nossa ilusão. Para o surrealismo são imagens nascidas de ações desautomatizadas e por isso inovadoras.
O número de equilíbrio cruzado em “Balbúrdia”, em que Nié fica em cima de uma tábua apoiada em dois carreteis e dá passos simultâneos aos de Maíra, se multiplica em sombras, no espelho de simulacros.
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Em “Balbúrdia” a mulher sobe às alturas com fluidez, pelas cordas penduradas no meio do cenário. O homem faz evoluções de solo e mexe com equipamento elétrico que solta faíscas. Ambos estão em contraste, mas próximos, já que fazem acrobacias de dupla com variadas interações.
O procedimento é o da mesma mistura presente em “Vizinhos” e “Cachimônia”. Com a visão do dia a dia entrelaçada com a trama do circo, a linguagem explora a vida real passada a limpo sob a lona, contém o difícil e o alegre, o vivaz apaixonado e a nostalgia irônica dos palhaços.
Assim que o filme de “Cachimônia” começa, conforme ocorreu em 21 de maio, o espectador percebe logo o cenário amalgamado. A cenografia (Artinerant’s) é uma roda de picadeiro sobre o chão, mas não é feita de lona, e sim de tecido brocado, decorado, daqueles de origem árabe e que no espetáculo evoca, por exemplo, a ação de contar histórias. A alternância de cores no palco faz o bordado brilhar e dá ao ambiente ar de cabaré.
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Numa extremidade dessa roda à nossa esquerda há uma sala de jantar e à direita uma moldura de aço pintada de lilás com fundo preto que alude à caixa preta do teatro.
A dupla de acrobatas atores dançarinos se movimenta nesse espaço materializado nos objetos recheados de duplos sentidos.
A cada número ocorre igualmente um rearranjo da gesticulação. É um universo em ebulição, vaivém dos astros em translações. A mesa da sala vira um palco giratório onde Maíra e Nié fazem evoluções que ora os aproximam, ora os afastam.
As cadeiras viram aparelhos de equilíbrio e exercícios acrobáticos, como acontece em “Vizinhos”.
Os gestos (teatro físico) do elenco são revelados por repetições. (Devido à visão chapada da tela, o espectador imagina as três dimensões.)
O público constrói sua própria narrativa. Qualquer que seja ela, não prescinde do circo, que está na mistura do experimental com a tradição de picadeiro, do lírico com o cômico, da música erudita com a popular e com a que se popularizou.
Onomatopeias da fazenda estão costuradas na trilha sonora e destacam o contraste entre a música urbana e o repertório rural evocado.
O circo na releitura esperta de saltos e giros acrobáticos, passos de dança, mímica e performance produz plasticidade e arma peripécias. Uma mão de plástico ou um corpo esfacelado e distribuído entre chapéus e ganchos se agarram a “Cachimônia” como extensões farsescas dos atores.
Então, qual é a mensagem? Perguntaria Ubu, personagem de Alfred Jarry (1873-1907), cômico patafísico que transforma o real em absurdo, mestre na inovação que o presente tanto anseia (a resposta vem e virá da arte).
Maíra e Daniel Pedro (casados na realidade) seguem uma rotina, mas embaralham as cartas. Tomam vinho, fazem refeições, e, assim, sabemos das instabilidades temporais e psicológicas.
A atmosfera cosmopolita propõe casamento com a precariedade inventiva do circo brasileiro, sempre a improvisar atrações. Arte de ruptura com um mundo já fraturado — as geleiras derretendo pelo aumento do aquecimento global.
Mas Maíra Campos e Daniel Pedro, com a direção informada de Lu Lopes, impõem serenidade diante dos passos e saltos a serem dados, mesmo no número da atiradora de facas, em que a atriz ameaça a plateia (ironicamente imaginária), porém acerta um coração desenhado no cartaz pregado nas costas de uma cadeira em cima da mesa.
O quadrado de metal lilás com fundo preto de elástico toma a função do ilusionista em outra cena, transforma um personagem em outro na medida em que Ele entra na matéria escura (o fundo preto) ao mesmo tempo que Ela sai do buraco de minhoca (luminoso).
Maíra se arrisca ao se equilibrar andando sobre garrafas de vidro, como falsária da arte de se equilibrar do arame – operação metalinguística das melhores. Na trilogia, os corpos em movimento narram parte de uma mesma história sem palavras, como o continuar dos dias.
*Jornalista especializada em infância, crítica de teatro e professora. É autora do livro de poesia “Perda Total” (Ed. de los Bugres, 2019).
Ficha técnica
Trilogia gravada na lona do Zanni sem público
A trilogia foi gravada em março, sem a presença do público por conta da pandemia, sob a lona do Circo Zanni, instalada no quilômetro 26 da Rodovia Raposo Tavares. A formatação adotada para exibir esta mostra de Repertório da Artinerant´s é resultado de adaptação de um projeto aprovado no ProAc Expresso da Lei Aldir Blanc, que iria realizar circulação documentada dos espetáculos em cidades do interior de São Paulo. Por causa da pandemia, as apresentações presencias foram suspensas. Foi então que o grupo optou por gravar os espetáculos para levá-los ao público por meio do Youtube.
Vizinhos
Duração
50 minutos
Ficha técnica
Direção: Lu Lopes
Criação e elenco: Nié (Daniel Pedro) e Maíra Campos
Figurino: Artinerant’s
Cenografia: Flavia Mielnik
Trilha Sonora: Artinerant’s e Lu Lopes
Desenho de luz: Paulo Souza
Cenotécnica e contrarregragem: Edimar Santos
Produção: Eu.Circ (Marina Ferreira
Balbúrdia
50 minutos
Classificação etária
livre
Ficha técnica
Direção: Lu Lopes
Elenco: Nié Pedro e Maíra Campos
Cenografia: Cris Decot
Figurino: Artinerant’s
Desenho de luz: Paulo Souza
Cenotécnica e contrarregragem: Edimar Santos
Trilha Sonora: Artinerant’s e Lu Lopes
Produção: Eu.Circ (Marina Ferreira)
Cachimônia
Ficha técnica
Criação: Artinerant’s
Direção: Lu Lopes e Tato Villanueva
Elenco: Nié Pedro e Maíra Campos
Figurino e cenografia: Artinerant’s
Adereços: Cris Decot
Direção de arte: Joana Lira
Arranjos musicais: Renato Faria
Coreografia: Marcelo Vasquez
Desenho de luz: Dodô Giovanetti
Cenotécnica e contrarregragem: Edimar Santos
Trilha Sonora: Fê Stok e Lu Lopes
Design gráfico: Agatha Campos
Fotografia: Paulo Barbuto
Filmagem: André Marques Albuquerque
Produção e idealização de projeto: Eu.Circ (Marina Ferreira)